segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Caixinhas

Eu tenho mania de passado. Uma péssima mania, dizem. Eu teria medo de afirmar categoricamente.
Eu tenho muitas e muitas caixinhas. Pastas. Gavetas. Latas. Organizadores. Malas. Sacolas. Estojos. Bolsas. Mochilas. Caixotes de feira que, pintados em cor viva, me dão a esperança de repintar a memória.

Eu tenho muitos armários e portas. Minhas portas favoritas são as que têm chave. Não há nada de importante ali. O que há de importante fica no armário cujas portas estão não apenas quebradas, mas estão rotuladas como quebradas e inúteis. Canetão vermelho e fita crepe. Fica bonito, finge-se que eu martelei as portas propositadamente e que as moças continuam aí não por minha falta de força, mas por escolha.

Eu tenho uma caixa de postais que nunca enviei. Eu tenho uma caixa de cachimbos do meu ex-marido que futuramente devolverei. Ele atualmente me chama de bonita e eu simplesmente odeio isto. Eu tenho uma caixa de remédios. Uma caixa de chás. Umas várias caixas de xerox. Eu tenho uma caixa de dados e uma de fichas de poker. Eu tenho uma caixa de rolhas de vinhos chiques, todas com data e uma barriguinha roxa. As rolhas não foram mais efcientes do que a minha própria memória. Talvez cada uma delas guarde um conto erótico ou romântico que eu não lembro mais. Mas todas as rolhas juntas encaixotam uma esperança tão velha quanto a própria História. Eu tenho algumas caixas de bolachas de cerveja. Talvez eu tenha mil delas. Eu tenho uma caixa de cigarros. Minha mãe trouxe cigarros chiques da Itália. Um amigo me trouxe um maço cubano. Há cigarros de palha para uma noite preguiçosa. Um esqueiro florido e russo. Um pacote de Bresnan que eu comprei errado querendo agradar alguém que eu quis que se torna-se importante. Há dois maços de marlboro vermelho que eu insisto em fumar em noites como esta. Talvez para não ter o que devolver ao dono. Talvez por que o cheiro já me lembre o cheiro dele. Talvez por que o marlboro vermelho me dá dor de estômago e eu acho que eu mereço.

Saio da caxinha de cigarros e abro a caixinha de remédios. Quase tudo que tem ali foi a minha vó que me deu. Pego um remédio para gastrite. Eu me obrigo a cuidar de mim. Não sairá nenhum gentleman de nenhuma das minhas caixinhas para pegar o remédio, jogar fora os cigarros e me fazer cafuné. Mas eu tenho uma caixinha com os presentes do meu primeiro namorado: um bibelô de guerreiro medieval, um violino, um cetim vermelho, um pé de meia que foi meu escudeiro na tomada de um castelo e uma carta de adeus. O guerreiro, antes, se criasse vida, seria meu namorado. Hoje talvez fosse meu filho.

Eu pego mais um marlboro. Dividida entre a caixinha de esmalte e a mala de roupas de inverno, opto pela pasta virtual. A minha pasta, verdadeiramente minha, por que me retrata. São as bobagens que já fui capaz de inspirar. Cartas de amor e de ódio, poemas góticos e adolescentes, crônicas dos que se acostumaram a mim, montagens de foto, uma tablatura que eu não sei ler, o retrato de um retrato. O que eu mais tenho são prosas poéticas eróticas. Eu realmente não entendo nada de pessoas. Não entendo, mas gosto. Muito.

Passa um carro tocando Living on the Edge. Por que ele passa? Ele estaciona e abaixa o volume. Eu não preciso escutar nota nenhuma para música ecoar na minha caixa-cabeça. Eu fecho os olhos. Tá escutando este barulhinho? É de morcego. Tem muito morcego por aqui.

Me pego organizando as fotos da minha caixa-cabeça. Tem tanta coisa aqui. Eu grito. Ecoa. O pé direito alto dá a sensação de que tem mais espaço do que tem. E se eu colocasse umas prateleiras? Você sabe que você nunca mais mexe no que está na prateleira. Se não vai mexer, por que não joga fora? Se você vai me dizer o que fazer, por que não fica quieto? Me passa a fita crepe?

Você sabe. Eu tenho essa mania de caixinhas. De classificar as coisas e encontrar uma caixinha que as acolha e encontrar um lugarzinho que faça sentido e uma etiqueta colorida, datada, subjetiva.
Eu nunca vou perder esta mania. Mas eu posso engavetá-la, se você pedir. Posso achar uma caixinha adequada para guardá-la. E um cantinho novo na prateleira das manias esquecidas. Ela talvez fique bem entre a intransigência e o yôga. E preciso de uma etiqueta com a roda da fortuna estampada. E talvez eu possa fechá-la à chave. Junto das taças amarelas da minha bisavó e dos gnomos que protegeram uma adolescente gótica nada suave.

Repasso os olhos nos armários. Nas prateleiras. Não há pó, teias de aranha, barata morta. Todas as caixinhas intactas esperando para serem abertas. Ou não. Curioso mesmo é ver tanto pacotinho de açúcar inteiro, aguardando décadas para adoçar um café. Achei um pacotinho da primeira vez que fui ao Rio. Achei um pacotinho da Patagônia. Curioso. Neste intante, há pézinhos que eu amo pisando o Rio e a Patagônia. Talvez este seja um super poder meu. Evitar que a memória apodreça, mesmo às custas do café amargo e da inércia da prateleira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário