-
Palma, palma, não priemos cânico! Você está machista, mas
não necessariamente é!
Terça, dia 4/2/14,
eu fui até a biblioteca Mário de Andrade ver a gravação do
#programapiloto da #cartacapital. Faziam parte do encontro, um talk
show virtual comandando pelo Sakamoto, além do próprio, Karina Buhr
(cantora baiana), PC Siqueira (vlogueiro paulista) e Ferréz (escritor
da periferia de São Paulo). Gostei de ter ido e visto a discussão
toda, as perguntas das pessoas e, especialmente, da discussão final com o público. Mas, como é de bom tom, vou falar do que não
gostei, não sem antes parabenizar a iniciativa dos quatro e da
#cartacapital. A iniciativa e os debates são muito importantes e
espero que eles gerem muita repercussão e ainda mais debate. É com
este espírito que resolvi escrever este texto. Esta é uma tentativa
de debate (não um desabafo e muito menos um ataque) e vou tentar
passar algumas de minhas impressões de uma forma não agressiva,
embora eu esteja muito irritada com algumas coisas que eu vi e ouvi.
O vídeo do encontro foi ao ar hoje, aqui, mas agora não está acessível ao público.
A
grande maioria das discussões foram interessantes, ainda que
superficiais, não só pelo tempo, mas também porque nem sempre os
convidados estavam aptos a discutir os temas propostos. Discutiu-se bastante o rolêzinho, talvez o tema central
da noite, o beijo gay, a PM, as novas formas de protestos que estão
surgindo, as chacinas nos presídios do Maranhão ignoradas pelo clã
Sarney, etc. Coisas relevantes e que devem ser discutidas e debatidas
publicamente e “no mundo real”.
No
geral, a discussão foi boa, ainda que com mais apelo às piadinhas
do que eu gostaria e um tempo considerável foi perdido para falar
mal de quem fala mal de mim. “Coxinha, reaça, eu falei para irem
dar um rolêzinho lá em casa”. Esta reiteração de falar mal dos
haters pode ter várias motivações: se auto-afirmar, ser engraçado,
deslegitimar quem fala de você e, também, ter (ou criar) um inimigo
comum que nos une. Afinal, todos nós (platéia e debatedores) somos
contra reaças (este título cujo significado é cada vez mais amplo
e difícil de definir), mas alguns dos presentes ali no auditório
não eram a favor de discutir, por exemplo, o beijo gay, o que mostra
que a platéia ali era bastante heterogênea. A platéia era composta
também por pessoas que acham o fato de ter um beijo entre um
casal de homens gays no horário nobre da maior e mais controladora
rede de tv do Brasil um ponto importante nas consquitas LGBT e que
deve sim ser discutido (eu faço parte deste grupo).
Rolêzinho
e femisnismo: #comofas
Não
só a platéia era heterogênea (o que é algo muito positivo), mas
também os convidados. O Ferréz defendeu que a causa negra não
sirva de porta de entrada para discutir outras questões étinicas,
como a indígena; o PC Siqueira faz piadas sexistas durante o
programa e todo mundo acha normal; quando a Karina Buhr (que falou
muito pouco) fala para os três outros debatedores pararem de se
referir aos rolêzinhos como “um monte de moleque que quer pegar
mina” por que no rolêzinho também tem menina (e, lembremos, os
moleques não pegam as minas, as pessoas se pegam mutuamente, por que
os dois querem, e é assim que o mundo deveria funcionar), ninguém a
escuta e pronto. Neste último caso, todos passam incólumes à
colocação da única mulher do grupo sobre a forma como aqueles três
homens, de esquerda, libertários, formadores de opinião, falam
sobre as mulheres e sobre o rolêzinho. Um monte de moleque que
compra tênis para impressionar as mina, um monte de moleque que vai
no shopping para pegar mina. Não, as mina também estão ali como
parte do rolêzinho, não?
Todo
mundo ali não condena os rolêzinhos, entendem como algo que, ainda
que não tenha motivações políticas claras, é sim uma resposta à
violência e exclusão que estes jovens sofrem do Estado e da
sociedade. Que bom, né? Só que também entendem (ou pelo menos
trataram assim os rolêzinhos diversas vezes), que é um grupo de
moleque que vai pegar mina no shopping. Não tem menina no rolêzinho?
Elas são invisíveis? Elas também não querem comprar as coisas, se
divertir e pegar os moleque? Como assim o papel das mina no rolêzinho
é servir de chamariz pros moleque irem para o shopping? Os
muleque, estes caras oprimidos, fodidos, vão lá no shopping dar a
sua resposta revoltada à sociedade e as meninas vão lá fazer o
que? Ser objeto de desejo dos muleque. Não! Em algum momento do
encontro, falar que os rolêzinhos são só um bando de moleque
querendo se divertir e pegar as mina se tornou um consenso bom. Eles
não estão lá para fazer nada antinatural, para promover a baderna,
podem relaxar, eles só estão indo pegar umas mina e namorar umas
marcas. Não! Este discurso para “naturalizar” o rolêzinho não
tem que passar por nenhum viés sexista e os debatedores não
perceberam isto ainda. Talvez nem mesmo tenham percebido o que
fizeram e, talvez, nem mesmo depois de ler o texto vão entender o
quanto esta pequena atitude é, sim, machista.
E
se os debatedores falassem “são jovens que vão para o shopping
ficar/namorar/se pegar”? Isto não é ofensivo para ninguém. Isto
não denigre ninguém, nem coloca as mina no rolêzinho como puro e
simples objeto de desejo. A Karina Buhr tentou avisar os três, mas
eles não escutaram. Se, talvez, fosse o Sakamoto que falasse “gente,
vamos parar de falar “pegar mina” por que todo mundo se pega
mutuamente?” seria lindo. As meninas da platéia iam achá-lo o
cara mais feminista do mundo. Mas não, quem disse foi a cantora
bonita que estava ali e ninguém se importou com o que ela disse.
Esta
foi a primeira coisa que me irritou.
Eu
sou mais fodido do que você: uma trilogia trágica seguida de uma
comédia-resposta
Na
discussão final, depois da gravação, uma mulher da platéia
ressaltou que muita atenção é dada ao beijo gay e que estamos
perdendo o foco, que tem milhares de jovens negros morrendo na
periferia e isto é mais importante. O microfone rodou por um tempo
e, mais tarde, o Sakamoto respondeu dizendo que todas as lutas pelos
direitos humanos são importantes e que sim, eles dariam mais atenção
às questões de preconceito étnico da próxima vez, falariam da
causa negra e também da indígena, dos imigrantes. Então, o Ferréz
disse que não, que tínhamos que falar da causa negra, que ele
estava cansado de brigar por esta causa e quererem enfiar índio no
meio.
Esta
é uma afirmação bem complicada. Como foi ressaltada várias vezes
durante o programa, os grupos marginalizados têm dificuldade de
representação, têm uma auto-estima jogada no lixo e não lutam por
vários motivos, entre eles por que não se acham merecedores de
melhores condições de vida ou por que não sabem como lutar. Há,
então, muitas pessoas que, graças a mecanismos de opressão, não
se manifestam. Não seria bacana responsável que os grupos
com capacidade de se organizar pudessem, pelo menos, alavancar outros
grupos, outras discussões? Por que não reconhecer que é o mesmo
mecanismo e o mesmo grupo opressor que marginaliza diferentes grupos
minoritários? Para debater a questão indígena, não teríamos que
seguir uma linha de raciocínio muito parecida com a que usamos para
entender a questão negra? Será que os indígenas, atualmente, têm
a mesma capacidade de articulação, o mesmo número de pessoas
envolvidas, dos negros? Não seria bacana responsável que a sua luta servisse de
telão também para a luta do outro?
“Que
venha um índio aqui e cause como ela”. Disse o Ferréz ao Sakamoto
sobre a moça que gritava da platéia.
Será?
Será que quantos indígenas ficaram sabendo deste encontro? Teria,
na platéia, pelo menos um índio? Os índios já conseguiram
minimamente quebrar algumas barreiras sociais e têm acesso ao
feicibuque para, ao menos, ficarem sabendo do encontro?
Parece,
então, que, dentre os diversos grupos de excluídos no Brasil, uns
têm maior representatividade e outros menos (para não dizer que uns
se fodem mais e outros de fodem menos, afinal, ISTO NÃO É UMA
COMPETIÇÃO PARA SABER QUEM É MAIS FODIDO PELO SISTEMA!). Então,
por que a luta de um não pode levar o outro na algibeira? Não só
pode levar, como eu acho muito bom é que leve mesmo. Ninguém está
pedindo ao movimento negro que ele pare de pedir melhorias na
periferia ou políticas que aumentem de forma efetiva e não
autoritária a segurança de jovens negros, para começar a se
manifestar pelos sem terra ou pelos índios. Não é isto! O que se
pede é: não diminua a luta alheia e não se recuse a entender
outras questões como tão legítimas quanto a sua. Se der, dê uma
ajudadinha até.
Quantas
pessoas passam a se identificar com uma questão de um grupo
específico para, a partir daí, refletir criticamente o mundo e as
relações em diversos níveis? Será mesmo que ninguém se tornou
menos homofóbico, racista ou machista depois das manifestações de
junho/13, depois de ir pras ruas contra o aumento da passagem? Eu
acredito muito que sim e não ligo que a minha causa leve outras na
algibeira.
Ps:
não estou demonizando o movimento negro. Infelizmente, esta atitude
“a minha causa vale mais que a sua” está presente em
praticamente todos os movimentos. Só estou falando deste caso
específico por que é o que aconteceu no encontro.
Nada
do que é humano me é alheio. Terêncio
Logo
no início do encontro, o Sakamoto perguntou para o Ferréz como anda
a situação de homofobia “para ele” na falta de uma expressão
melhor e o Ferréz respondeu que as coisas melhoraram muito nas
comunidades, mas que (rindo, claro) o maior xingamento de todos é
gayzão. Disse também que gay na comunidade é mais feio, veste
roupa da mãe, sai de hobby na rua, alisa o cabelo e fica horroroso. Gay pobre tem mais
motivos para ser zuado. E, aparentemente, com razão, já que o
próprio Ferréz, um dos maiores divulgadores das causas do movimento
negro, acha isto tudo muito engraçado. A imagem que o Ferréz tem e
divulga do gay pobre: um cara zuado, com roupa da mãe e faz
chapinha.
Enquanto
alguém como o Ferréz, “o todo poderoso da periferia”, como
ele se entitulou brincando graças à sua voz de "trovão", não reconhecer que na periferia há sim
(e talvez haja ainda mais do que em outros espaços) muita homofobia
e, pior, de que há o próprio preconceito dos movimentos sociais em
abraçarem esta causa, as lutas serão todas sobre si mesmo e não
sobre direitos humanos.
É
extremamente conhecido o desligamento da periferia e do movimento
hiphop às causas LGBT e feministas. Por que? Quando isto vai mudar?
Estes indíviduos por serem homossexuais, transexuais, mulheres e
pobres, não teriam problemas específicos? Demandas específicas? O
que as duas causas ganham com este desligamento? E o que elas perdem?
III – O retorno do todo poderoso
A verdade, quando você solta, pode tremer. Ferréz
Foi
discutido também de que forma o formato dos rolêzinhos (o que estes
jovens compram, de onde vem, por que comprar, o que querem com isto,
o que querem mostrar com isto, etc) é uma resposta (vingança, foi a
palavra do PC Siqueira) a anos de violência.
O
Ferréz discutiu bastante um mecanismo opressor que negros e pobres
sofrem diariamente: a desvalorização do grupo. O Ferréz falou,
então, de coisas simbólicas: os moleques querem comprar algo caro
para se sentirem na mesma altura das pessoas da classe AB. Pessoas
que, sempre foram entendidas e, a partir daí, se entenderam também
como a escória da humanidade, precisam ter e mostrar alguns bens que
trazem status (exatamente por serem, antes, bens acessíveis apenas à
parte valiosa da humanidade) para se sentirem em pé de igualdade com
o outro.
Esta
é uma resposta simbólica a uma violência que se expressa
simbolicamente e também fisicamente. Alguém ter que trabalhar a
vida toda como pedreiro ou como motorista e ganhar algo insuficiente
para seu sustento, já é por si só uma violência física muito,
mas muito terrível.
Mas
voltemos à violência simbólica. Ver coisas que você não pode
comprar, ver uma vida toda que você nunca poderá ter, é uma
violência simbólica, mas suficiente para que muitas milhares de
pessoas se sintam a vida toda acuadas. É o suficiente para que estas
pessoas pensem a vida toda que ela não têm direitos, que elas não
valem tanto quanto os outros. Logo, a violência simbólica é uma
violência. É tão ruim quanto as outras? Não sei, eu, que sofro
violências simbólicas diárias, acho que sim. Acho também que
quando a coisa é repetida, a violência simbólica até ganha status
de violência física.
O
Ferréz concorda comigo no que diz respeito à violência simbólica
que estes jovens sofrem diariamente. No entanto, ele não parece
conseguir entender, ou mesmo ver, a violência simbólica que a
comunidade GLBT sofre. Discutindo violência simbólica, Ferréz
defende que uma coisa é xingar travesti, outra coisa são os
preconceitos sofridos por estas pessoas, como, por exemplo, não
arrumar empregos.
Esta
fala é muito coerente com o posicionamento do Ferréz que diz que na
periferia não tem homofobia. Os casos recentes de violência física
a gays, travestis e pessoas que desviam da norma por qualquer motivo
que seja, acontecem geralmente no centro das cidades. Será? Será
que isto não acontece também na periferia? Será que esta fala,
vinda de um grande defensor da periferia, não oprime ainda mais os
gays da própria comunidade?
A
consequência deste posicionamento é simples: não pode matar, mas
xingar pode. E não, não pode. É crime, inclusive (ainda que isto
não importe). Violência simbólica é um termo muito leve para
esconder humilhação pública diária. Milhares de pessoas saem nas
ruas todos os dias sabendo que serão xingadas. Trans, travestis,
gays. Isto não é menos importante do que os casos de assassinato
que estão acontecendo. Isto não é menos importante do que pessoas
ficarem desempregadas graças à sua opção de gênero ou sexual. E
isto não é menos importante por que as coisas andam juntas. Não dá
para resolver a violência real e física sem resolver a simbólica.
Ambos são sintomas da mesma doença. Quem xinga um travesti na rua
ou chama um amigo de gayzão tem a mesma doença do cara que mata um
gay na Paulista. É a mesma coisa, mas expressa em níveis de
violência diferentes.
O
cara que chama desempregado de vagabundo, não é o cara que está
pronto a “fazer justiça com as próprias mãos” e acorrentar um
suposto ladrão a um poste? O cara que ofende travestis na rua,
também é o cara que está pronto a “fazer justiça com as
próprias mãos” e jogar coisas nos travestis e prostitutas do centro de São Paulo ou pior. Talvez nem todo cara que xingue esteja disposto também a matar, talvez ele esteja ingenuamente reproduzindo o que sempre escutou. Mas se estes ingênuos não pararem de reproduzir a violência simbólica, quando os xingamentos e as mortes todas vão acabar? Enquanto não tratarmos a violência
“simbólica”, contra absolutamente qualquer grupo minoritário,
como um sintoma grave, estamos simplesmente ignorando a violência
real que existe e não deixará de existir.
Para
pessoas que não são a favor de matar gays na rua, é recomendável
que também parem de reproduzir estes mesmos preconceitos verbal e
publicamente.
Por
fim, quando o Sakamoto estava falando dos temas que eles ainda
gostariam de tratar, citou a influência negativa da mídia, a
questão étnica, negra, indígena, GLBT e foi lembrado, pela Karina
Buhr, de enfiar as mulheres no saco a ser discutido. Algumas das
mulheres da platéia ficaram felizes e uma disse "pauta de lavar louça".
Então, nosso querido amigo PC Siqueira responde: “ah lavar louça é
muito chato”. Eu, então, que já estava muito #xatiaded, o chamei
de machista e ele não gostou. Disse (e até tuitou depois) que se
achar lavar louça chato é ser machista, ele é.
Bom,
estamos numa mesa discutindo quais as questões sócio-políticas
devem ser debatidas no próximo programa. A única mulher da mesa
lembra pela segunda vez que “as mulheres existem”. Uma menina ingênua irresponsável da platéia liga a pausta feminista à cozinha. E a resposta
do cara engraçadinho e mal preparado da roda é: lavar louça é
muito chato. Eu me sinto uma idiota explicando porque esta afirmação neste momento é
machista: é machista uma afirmação que liga a luta das mulheres à
cozinha. Tanto a colocação da menina, que aparentemente só queria fazer mais uma piadinha, quanto a dele, que não podia perder a chance de continuar a zuera. Infelizmente, sendo piada ou não, as colocações resumem a luta das mulheres a lavar a louça! Uma
afirmação sem desdobramento, apenas para ser engraçadinha
(lembremos dos nossos queridos Gentili e Rafinha Bastos, eles não
têm mesmo alguma cois“inha” que lembra o PC Siqueira?) e que em
vez de apoiar a fala da Karina (“Sim! A luta das mulheres nos
interessa!”) vem para rir dela, deslegitimar (“ah, não vamos
falar de mulheres, lavar louça é muito chato”).
Eu
vou partir do pressuposto que este moço (e, principalmente a moça da platéia) não quis dizer tudo o
que pode ser interpretado desta frase. Digamos, ele é um carinha
leviano que faz piada machista em rede nacional (já podemos chamar
assim o #projetopiloto?). O mundo está cheio deles, não é? Tão
cheio, mas tãããão cheio, que a gente nem liga mais, mas TEMOS que
ligar. Especialmente quando é um formador de opinião libertário
quem diz isto.
O
que esta frase nos diz?
A
luta das mulheres é chata.
A
luta das mulheres não me interessa.
Eu
não gosto de lavar louça, logo, não devo lutar pela causa
feminista por que aí terei de lavar louça.
Quando
o PC Siqueira fez esta linda afirmação, eu, do segundo andar,
gritei “machista!”. A esta altura do campeonato, algumas pessoas
já estavam gritando coisas e, seguindo a indicação do Ferréz
(“que venha aqui um índio tumultar e nós discutimos a causa dele”),
eu achei que era mesmo uma obrigação lembrar o moço e a platéia
de que ligar o movimento feminista à cozinha não é
bacana responsável. A menina da platéia
respondeu algo que não ouvi, mas no vídeo vi que ela ironizou dizendo "feminazi", ou pra mim, ou para ela. Enfim, eu considero a intervenção desta menina só mais uma piadinha de um oprimido que ainda não entendeu que reforçar a piada não ajuda.
No
fim do encontro, ele reiterou: “eu acho lavar louça chato, sou
machista por isto?” e eu gritei de lá de cima “falar de lavar
louça quando estamos discutindo feminismo é machismo”. Reduzir a
luta feminista à decisão de quem vai lavar a louça é uma coisa
inaceitável. Ele não me respondeu na hora e ainda levou o assunto
para o tuíter.
Bom,
o fato de ele ter tuitado algo também me lembra a questão do “vamos
falar mal de quem fala mal da gente”. A gente se une contra quem
fala mal da gente. E mais, quem fala mal da gente são SEMPRE os
haters e apenas isto. E quem falou mal do PC Siqueira? Uma feminista!
E por que? Por que ele “apenas” falou que não gosta de lavar
louça. Nossa! Que desserviço maior ao feminismo o PC Siqueira
poderia ter feito? O inimigo comum agora é a mina que fala mal
do pobre moço de nobre coração que não gosta de lavar louça
(imagina, então, de recolher lenha!).
Depois
de tudo que rolou lá, depois de reduzir as mina do
rolezinho a simples objeto dos moleque revolucionário, depois de não
dar voz à Karina, depois de reduzir a luta feminista à cozinha, ele
tuita que “hoje uma mina me chamou de machista porque eu disse que
lavar louça é um saco(?)”. Não, querido, não foi por isto, eu
te expliquei na terça mesmo que não foi por isto e posso te explicar
que todos têm o direito de achar chato, mas que ninguém tem o
direito de reduzir a pauta feminista a isto. Eu gostaria de lembrar,
já que estamos falando de louça, que não gostar é ok, mas não
fazer e deixar tudo para sempre uma mulher fazer (sua esposa, mãe e
até sua empregada!) é machismo. Isto é opressor e largar o serviço
que você não quer fazer para uma mulher é sim uma forma de
controle e de oprimir, de dizer “você vale menos, então faça o
que eu não quero fazer”. Então, caros meninos lindos de esquerda,
se você é libertário, lave a sua louça. É bacana responsável.
Depois
o PC voltou a postar “se não gostar de lavar louça é ser
machista e estar errado, eu nunca quero estar certo”. A tuitada
para definir o inimigo comum: as feministas loucas que acham que
todos estão errados sempre e por qualquer motivo. Toda a esquerda
tem este mesmo inimigo interno, a feminista. Então, o cara vai no
tuíter reforçar qual estereótipo: o da feminista louca (louca,
neurótica, maluca, barraqueira... todos estes adjetivos lindos que
são próprios das feministas e mulheres no geral, né) que rotula as
pessoas de machistas por nada. Não! Não poste isto, moço, nem
sequer pense isto, por favor! Você não foi rotulado à toa, mas
quem sabe isto sirva de ponto de partida de uma reflexão maior e não
para que você continue desligitimando o movimento feminista. Talvez
a maioria da esquerda seja ainda machista, então não ajude a
reforçar estereótipos mentirosos que oprimem ainda mais uma classe
que já é oprimida e que luta tanto quanto você por mudanças
profundas na sociedade.
O
que o PC Siqueira fez, ao vivo e também no tuíter, foi deslegitimar
uma causa. The zuera never ends, não é mesmo? Desligitimar uma
causa é você rir dela, zuar, tratar como banal. Você faz isto
muitas vezes e também muitas outras pessoas fazem, logo esta causa
vira motivo de piada, vira estereótipo. Este é um mecanismo de
opressão usado desde sempre. Os opressores riem do negro, das
mulheres, dos pobres. E o PC Siqueira riu de quem? Da mina que chamou
ele de machista. Por que ele ri? Por que rir é a forma que ele
escolheu para deslegitimar a minha afirmação. Quando ele faz piada
da intervenção da Karina Buhr pedindo uma pauta feminista, ele usa
exatamente o mesmo mecanismo opressor: ri, faz piada e ignora o que
foi dito. “Vamos discutir machismo? Ah, eu não gosto de lavar
louça.”
E
se fosse o Ferréz falando que o movimento negro precisa também
estar em pauta? A resposta equivalente seria “Acho ir para senzala
muito chato” (por que, né, galera, a cozinha é a senzala da
mulher e, como mostra o nosso querido PC Siqueira e a querida da platéia é a PRIMEIRA coisa
que vem à mente quando o assunto é mulher ou feminismo). Poderia
ser ainda “Ah, mas eu não gosto de cabelo pixain”. E aí? E aí
que o Ferréz ia achar normal? Ia achar piada? Depois da primeira
intervenção da noite trazendo a causa feminista à discussão, a
resposta é “eu acho lavar louça muito chato”, é uma piada?
Bonita, límpida, à la Chaves, que não significa
nada? Que não oprime ninguém? Que não repercute? Que não
evidencia o que este querido pensa da causa feminista e quais são as
primeiras relações que vem à cabeça dele?
Bom,
relembrando: eu gostei de ter participado do encontro. Eu não odeio
nem o Ferréz, nem o Pc Siqueira e, muito menos, o Sakamoto, mas (o
famoso “mas”) nem sempre os discursos destes caras são
coerentes e responsáveis. Nem sempre eles são capazes de aplicar um mesmo
raciocínio a diferentes questões. Todos eles (inclusive o
Sakamoto, mon amour) se referem às mulheres como objeto
e, sendo estes três caras formadores de opinião DE ESQUERDA (esta é
a nossa esquerda mais inteligente!), isto é preocupante. Tudo bem, eles são humanos, não sabem ainda de
algumas coisas e a gente não sabe de outras. Então, a gente conversa e é só isto que este texto
está tentando fazer.
Eu
gostaria de pensar que o PC Siqueira não é machista,
ele está machista.
As pessoas são, sim, capazes de refletir e mudar de opinião e
atitude. Logo, o moço tem agora a sua chance de repensar o seu
próprio discurso, as suas piadinhas, as colocações que ele faz
única e exclusivamente para ser engraçado, mas que ofedem um grupo
muito grande de pessoas e que ajudam a perpetuar ainda mais as
diferenças e privilégios entre grupos. Não seria bacana responsável com todas as pessoas que se identificam com o movimento feminista,
ele repensar as suas questões e causas ao
invés de
deslegitimar a minha fala?
Depois
de tudo isto, eu chego a duas conclusões
velhas:
1)nossa
esquerda é incoerente e irresponsavel, ainda incapaz de ver os mecanismos de poder
que atuam em todos os grupos excluídos. Ainda que o mecanismo de
opressão seja quase sempre o mesmo, eles não se dão conta dele
quando o grupo excluído não é o seu próprio.
(Talvez
o PC Siqueira não saiba que ele está reproduzindo a lógica do
opressor falando o que ele fala.)
2)
Nossa esquerda é fraca e desunida. Isto ficou muito
perceptível no encontro. O movimento negro não quer falar do beijo gay nem de
índio, ninguém quer falar de machismo, lésbicas, trans e mulheres
negras ainda não encontraram o respaldo que procuram no feminismo, a
reforma agrária não é mais pauta da esquerda, etc, etc.
Atualmente,
até se comenta sobre a desunião da esquerda, mas a desunião que é
comentada ou diz respeito ao que aconteceu nas passeatas em junho/13
ou na articulação inexistente dos novos movimentos sociais com os
antigos partidos e sindicatos de esquerda. Mas não é disto que eu
estou falando. Nestas manifestações, por exemplo, tinha muita,
muita gente com muitos objetivos diferentes, inclusive o objetivo de
bater em quem parecesse “vermelho”. Estou falando da
desarticulação dos movimentos sociais (novos e velhos) entre si, da
briga por decidir qual pauta é mais importante (geralmente através
do critério irreal de “qual o grupo se fode mais”) e da
deslegitimização da luta do outro para que a sua própria luta seja
a mais importante.
Fazer
com que a população e os movimentos sociais sejam desunidos é
também um mecanismo opressor. A desunião da esquerda só faz a
direita ter mais poder e nossa luta tem que ser também contra isto.
Contra a nossa própria desunião e dificuldade de se colocar no
lugar do outro. Então, neste sentido, eu não quero que meu texto
sirva simplesmente para descer o cassetete no PC Siqueira por que ele
é machista ou no Ferréz por que ele não reconhece outras lutas
como tão legítimas quanto a dele. É para fazer refletir. Por que
há esta desarticulação? Como funcionam os mecanismo de opressão que
estão tão enraizados culturalmente que nem mesmo os líderes de
movimentos sociais e formadores de opinião de esquerda são capazes
de passar por cima?
#machismotemcura
#esquerdaunida