quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Ta, sobre ser grande

 Oi, pessoal!

Pessoal?! Pessoal?!


Será que ainda tem alguém aí?

Bom, não importa, mas seria legal se tivesse.

Hoje eu vou falar sobre meus 4 meses em Manaus. Mesversário de Manaus recente. Foi uma data muito louca, que ia passar em branco, mas foi incrível. Isso me fez ter muita vontade de vir aqui no blog contar. Eu ia escrever um texto todo poético e hermético, mas eu fiquei com vontade mesmo foi de escrever no bloooog!

Daí, eu fui ler o blog antigo, né. Óbvio. De onde vem essa vontade? Lá (aqui, no passado, exatamente o contrário de "là" no francês, enfim...) eu ia contando as coisas que eu ia conhecendo pros amigos... meus amigos liam o blog, não tinha rede social nem mensageria. Então, eu escrevia meio que pra contar pra todo mundo o que eu contaria no bar (ou no café, mas eu tinha 20 anos e não ia a cafés). Eu contava de tantas descobertas que eu tinha, de uma forma tão autêntica, genuína, sem vergonha. Eu falava de preconceitos, de coisas que estavam em formação. Hoje eu leio o blog e relembro de tanta coisa, é mesmo uma descrição da minha formação. E muito despretenciosa e gostosa. Eu não sei se hoje consigo escrever assim, mas eu vou tentar. Pelo menos, vai servir pra Livyta de 50 anos ler e ficar orgulhosa e entender como a gente chegou lá (nossa, "lá" serve pra tudo, hein?).


Conversando com o Lisney, sua filha Mariah e o gatinho (bem bem bebê) Príncipe, percebi que hoje (era dia 12 quando eu escrevi), faço 4 meses de Manaus. Lisney é indígena e vende paçoca com a filha na frente do Teatro Amazonas. Reclama que a conserva já tá 12 reais. Fala que ele almoça todo dia salsicha, miojo e frango empanado. Que um dia frango empanado era comida de rico. Hoje ele só come isso com farinha e o rico come suco verde. O frango empanado, a salsicha, o miojo, isso é o almoço de todo dia, por que até o produto amazônico tá caro. O açaí já tá vinte reais, a mandioca aumentou (a farinha, porque quase não se come a mandioca cozida, a farinha é mais fácil e rápida, não precisa de panela e gás). O Lisney não sabe o que é brócolis. A Mariah pela descrição que eu fiz diz que já viu, sabe o que é, mas nunca comeu. Ele me fala pra ficar na praça até onze horas e depois ir embora, fica feio. Ele me pergunta se é minha primeira vez em Manaus. Eu digo que moro aqui. Faz muito tempo?

Faz 3 meses. Não, na verdade hoje faz quatro.

"Parabéns dona Lívia. Lívia, né? Receba os cumprimentos e uma boa noite do Lisney e da Mariah". E a Mariah completa. "E do Príncipe". 


É tanta agilidade de pensamento. É tanta reflexão. É tanta sabedoria simples. Mas numa simplicidade que não tem lugar de ação. Chega a ser triste. E eu, finalmente, entendo os antropólogos (e talvez os sociólogos, isso ainda estou descobrindo) quanto a vontade de pegar essa sabedoria e transformar em políticas públicas.


Sim, eu estou há quatro meses morando em Manaus. Sim, eu me perdi no tempo e eu recebi os parabéns desses indígenas, desconhecidos até então (e agora, e, possivelmente, sempre) e de ninguém mais. Sim, eu percebo a solidão. Sim, eu reclamo muito do preço da comida. Do preço do brocólis. Eu não reclamo do preço do açai, nem da conserva (ou lata, que é a lata de fiambre, o pior tipo de carne que o sudeste fabrica... enlata "carne em conserva" e aqui no norte é a comida mais típica dos riberinhos e dos indígenas também. Chamam de "carne", "lata", "conserva", já ouvi de todo jeito. Uma vez, em uma viagem high-level, turismo de rico, o barqueiro parou o barco numa vendinha no meio do rio para comprar uma "conserva" pra vó. Parou o barco no casebre de madeira e palha e saiu com a lata de fiabre. Enquanto isso, eu e 2 turistas alemães e 2 suiços nos divertimos jogando bilhar e tomando kaiser na vendinha no meio do rio. Foi tão gostoso. Depois a gente passou na casa da vó do barqueiro, levou a lata. Ela pegou do barco na mão mesmo, a gente nem precisou descer porque a época era de cheia e o barco chegava até a janela dela. Bom, os nomes, o que as pessoas conhecem, o que o sudeste (hegemônico) exporta, tudo isso importa. Eu finalmente entendi o meu problema com o brócolis e o meu lugar de elite ao reclamar do acesso ao brócolis. Eu também entendi a dificuldade do acesso a alimento. À comida que sustenta, que já é cara, mas, especialmente, à comida saudável. "O rico toma suco verde". O Amazonas é o estado com maior índice de obesidade e pressão alta do país (o estado no meio da floresta, que não consgue sobreviver da floresta e que consome o lixo caríssimo da "civilização"... esse tem sido um ponto pra mim). Aqui, o suco verde custa a partir de 20 reais. Todo tipo de alimentação é caro. Seja no mercado, seja no café, (o que eu achei de barato são coisas muito, mas muito fritas, até o sushi frito é mais barato do que o normal, porquê??? tem um processo a mais!!!). O restaurante universitário ainda é barato (1,60) e é realmente bom. Mas eu, como pós-doc, pago a taxa de convidado (16,80). Eu ainda só como no r.u. quando vou à universidade e, entendendo que devem haver poucos pós-docs, ninguém ainda falou que essa era uma necessidade, brigou por isso, etc e tal, é aceitável que o status de pós-doc não te dê acesso ao restaurante, mas se fosse 1,60, eu sim, iria pra universidade para bandejar, porque lá tem salada crua e salada cozinha. Uma coisa curiosa aqui é essa coisa da salada cozida. Tem em toda parte. Você pega couve, repolho, acelga, cenoura, esses vegetais que são salada, mas dá pra cozinhar (tipo, alface não entra), cozinha tudo, fica muito gostoso, e se chama "salada cozida". Eu adorei. Inclusive, recentemente, eu descobri que pro meu dosha no ayurveda, essa seria a melhor alimentação. Uma coisa à parte que eu gostaria de discutir e sei que não vou é a relação amazônia-ayurveda que eu vejo em toda parte, especialmente na culinária. Mas tenho explorado bastante. Assim, como, recentemente, comecei a explorar as danças circulares (Wosien) com as dançcas indígenas. Bem, minha exploração é incipiente, rasa e sem metodologia, mas é uma forma de falar que essas coisas me interessam na minha vida. E me movem e acabam influenciando onde eu vou, o que eu faço, os meus movimentos. Enfin...


Bom, tudo isso para dizer coisas simples.

4 meses de Manaus.


Nesse dia, que foi dia 12, eu, na verdade, assinei um contrato de uma morada por um ano. Eu assinei esse contrato no dia 12, mesmo pegando as chaves depois, porque estava ansiosa. Mas eu não tinha percebido que era dia 12. Depois eu cheguei em casa, quebrada, esfarraparada. Eu queria ir pra academia, porque meu plano ia expirar no dia seguinte. Mas eu também queria ir pra ver uma dança no Teatro. A dança chama "Ta, sobre ser grande". "Ta" é uma palavra Tikuna. Eu entendi que significa "território", mas talvez seja outra coisa. Daí eu queria tanta coisa... Manaus é tão complicado quanto a isso, por que tem tanta coisa legal e as coisas ficam em até 20 minutos de você e custam barato (as coisas culturais, né... ingressos culturais são baratos... bem baratos, e mesmo assim, os espaços geralmente não estão cheios). Bom, enfim, eu queria ir na academia, trabalhar, ir nessa peça, descansar, etc e tal. Eu queria tudo. Eu trabalhei tanto, que eu me atrasei pro pilates. Daí eu já decidi que a academia (o ferro em si) valia menos. E, finalmente, decidi por ir na peça. Fazer as coisas tranquilamente. Poder tomar um banho, decidir a roupa que eu vou e desfrutar o "ir ao teatro". Eu ando fazendo as coisas muito a toque de caixa. Tipo trabalha até as 18h, 18h30 já é outra pessoa, com outra roupa, em outro lugar. Meu sistema nervoso não comporta mais isso (infelizmente, por que eu adorava esse ritmo e esse balanço das muitas personalidades e fazia bem na década passada).

Bom, eu fui na peça. Dirigi até lá, já sei um lugar de parar o carro. Já sei achar o meu lugar no teatro (com 4 meses hein!!! ;) ;) foda demaaais!!!). O espetáculo era uma dança contemporânea. O figurino era fantástico, e o mesmo figurino servia pra homem e mulher. Era uma coisa meio rasgado, mato, paleta-terra-verde-chão, mas era muito bem feito e bem pensado. Os corpos do corpo de baile eram incríveis. Tinha indígena musculoso, gordinha, branca gordinha, branca careca, pretos grandes e potentes. Realmente, foi o corpo de baile mais diverso que eu já vi. Durante a apresentação, eu me imaginei dançando ali (calma, gente, eu sei que eu não sei dançar, mas é que deu pra imaginar o meu corpo ali... e eu aprendendo a dançcar e chegando em algum lugar na dança... enfim, foi muito gostosa essa experiência. é bem diferente de quando você vai ver um ballet de SP ou do RJ, que você fica embasbacado com o que é mostrado, mas aquilo que é mostrado não fala com seu corpo, meio que cria um barreira dizendo que você não pode estar ali a não ser como expectator... eu tenho explorado mais meu corpo e querendo cada vez mais estar desse lado da produção... estão essa sensação foi muito boa).

Quando acabou o teatro, eu vi um restaurante que eu comi uma boa farofa de uarini em 2023, quando vim a primeira vez. Eu resolvi então jantar lá. Pedi um escondidinho de tambaqui. Tive a conversa com o Lisney. Descobri que fazia 4 meses que eu estava aqui. Que eu tinha uma comemoração em curso. Descobri que queria escrever no blog. E contar pra tantos amigos que eu amo e estão distantes todas essas descobertas. Mas eu não vou contar via rede social e ligar pra cada um não vai ser pra contar isso. Vai ser pra falar da vida.


Enfim, esse é um breve post em comemoração aos meus quatro meses de Manaus. Uma comemoração inesperada, seguindo as vontades do corpo, as intuições que resultou num "Ta, é sobre ser grande, então...".


Que venha mais o que tiver de vir!

Tá, é sobre ser grande, então...

Ahô











domingo, 22 de junho de 2025

Litha Amazônica

"The seasons alter: hoary-headed frosts
Fall in the fresh lap of the crimson rose,
And on old Hiems' thin and icy crown
An odorous chaplet of sweet summer buds
Is, as in mockery, set."


Da borda da floresta, celebro Litha. Da borda da festa, celebro São João. Da borda do verão, celebro o inverno.

Anuncia-se o verão amazônico. No meu corpo, expectativas e catarro. No meu copo, gengibre, cúrcuma, mururé. Infusão que aprendi ouvindo as plantas. E se há cura, ela vem das raízes. As raízes sempre sabem o caminho.

Aliás, foi escutando as raízes das palavras que aprendi isso também.

A palavra verão tem uma história que brota tortinha, como tudo que é vivo. A raiz latina vēr enunciava lá pros romanos primavera, a prima favorita de qualquer brasileiro. Um raizeiro português uma vez me contou que essa palavra é irmã da palavra grega éar, da palavra persa bahâr e da palavra russa vesná. Ele cultivava palavras e disse que todas significam Primavera. Num certo tempo, os povos da Península Ibérica chamavam de verão esse primeiro calor que agora chamamos primavera. E com o tempo, o que era começo virou auge. A primavera ficou sendo o primeiro verão, e o verão virou esse esplendor de energia e vibração solar.

Há palavras que mudam de estação. E há estações que mudam dentro da gente. Tenho meu segundo verão esse ano. Esse ano encantado, em que completo 40 voltas ao Sol. Neste ano, o verão trará também meu aniversário. Sempre achei mais ajustado comemorar meu aniversário no meio do verão, mas não encaixei bem no hemisfério norte. Engraçado, aqui, no coração da Amazônia, o verão sopra seus ventos a partir de junho. Somos o Norte do Sul. Somos um ponto invisível aos Nortes. Um ponto cardeal que não tem nome, mas existe, contrariando os estóicos. E só pra contrariar, mudei de estação sem mudar de hemisfério.

Hoje é São João, e como em tantas partes do mundo, celebramos o Solstício. Mistura de festa pagã e fé cristã, de tempos antigos e do agora, quadrilha e roda gigante, raízes e sonhos. Aqui, milho e mandioca. Muita mandioca. A sanfona distante acende em mim uma alegria antiga.

Com a garganta fechada e peito cheio, honro meu inverno no dia de São João. Ainda sinto meu corpo e meus ciclos desconectados do lugar. Na floresta, tudo balança. Me seguro no tempo, mas existe tempo sem espaço? Em Manaus, o verão chega aos poucos, como um velho amigo que demorou a escrever, mas nunca esqueceu o caminho da mata. É o início do céu azul profundo e do dourado do sol invadir as narinas. O dourado das fogueiras juninas subindo pelo corpo. O que está acima é como o que está abaixo e a alquimia da transição está em toda parte.

Nesse São João, nesse início de verão, Titania e Oberon aprontam mais uma vez. O descuído dos deuses derramado nos rios amazônicos. Dentro, a mesma magia desgovernada mistura as estações. "Sonho de uma Noite de Verão" foi a primeira peça que dirigi, aos noves anos. Sem saber direito o que era verão, direção, São João, mas sabendo já o que era sonho. Hoje, sabida(?), sou campo dividido, onde, juntas, bromélias brotam da neve e as raízes das samaúmas adormecem. Em meio a Titanias e Titônicas, também eu me tornei palco de um desacerto cósmico, onde os deuses das estações esqueceram o acordo do tempo e do espaço. Onde deusas gregas carregam coroas de flores mexicanas à diva maior, a Arte. São João, abençoai a Palavra!

Nesse solstício de Verão, meu peito carregado (ou vazio?) ganhou uma cobertinha e sopa de raízes e letrinhas, minhas antigas amigas. Respiro, tomo um momento. Uma música antiga, umas palavras engessadas brotam do gelo e avisam que tem uma Amazônia ali. Agora, aqui.

Faço em mim dessa Litha, desse São João, o resgate de tantas raízes e sonhos, palavras não tão diferentes assim. A honraria ao inverno, curvando-se frente ao verão equato-imperial que chega sem pedir licença. Eu lembro que o início não é auge. Eu lembro que o verão já foi primavera. Mais uma vez, a roda gira e gira, até se acertar. Se há uma noite mágica na floresta, com fadas, amantes perdidos e poções feitas de flores, ela é amazônica. Não poderia haver melhor história para se contar por aqui, onde a mata é viva e tudo tem alma, até o calor.

A Midsummer Night’s Dream, São João, Litha. Livy-Bonita-Camita. Uma mesma noite.

No mais longo dia do ano, desejo que todos celebrem seus sonhos e suas raízes. Essas luzes que crescem por dentro e por fora. Tudo brota, tudo cresce, tudo brilha.  Em dia sem Santo, num dia abafado, numa quarta-feira qualquer. Sem pressa, sem calendário.

Que o verão te encontre — onde quer que você esteja.
E que a tua palavra floresça.

Viva São João!

Viva o Verão!

Viva a Arte!

Viva o Viva!

Manaus, 22 de junho de 2025